segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Durkheim – uma teoria da integração social

Além da teoria do fato social com a qual a sociologia alcança um status científico próprio, Emile Durkheim ajudou a compreender o funcionamento da sociedade capitalista a partir do estudo sobre a divisão do trabalho social.

Segundo Durkheim a integração da sociedade acontece através de diferentes mecanismos de solidariedade social que mudariam conforme a intensidade da divisão do trabalho social.

A divisão do trabalho social seria então a chave para a compreensão do tipo de sociedade. Haveria uma relação inversa entre a intensidade da divisão do trabalho e a coesão social, ou seja quanto maior a divisão do trabalho mais fluida a coesão social, e, inversamente, quanto menor a divisão do trabalho maior e mais intensa a coesão social.

Dizer que a sociedade é mais ou menos coesa é retomar a teoria do fato social e perceber se ele é capaz de impor o poder coercitivo de modo mais ou menos intenso.

 

Divisão do Trabalho

Qualquer sociedade humana deve aplicar algua modalidade de divisão do trabalho. Os modos mais simples de divisão do trabalho são aqueles que se baseiam em características biológicas, comoa divisão sexual do trabalho. Neste tipo de divisão os homens assumem determinadas tarefas como a caça, pesca e defesa do grupo contra invasões de outros grupos e as mulheres realizam atividades como o cuidado com as crianças e a vida doméstica.

Entretanto, a divisão do trabalho pode alcançar níveis mais intensos como o que conhecemos em nosso tipo de sociedade, que funciona com uma economia de mercado. Neste caso os indivíduos se restringem a um reduzido número de atividades dependendo em tudo o mais dos demais indivíduos, com o agravante de que o capitalismo também proporciona um aumento da necessidade, pois tudo pode se transformar em mercadoria (veja aula sobre economia de mercado)

 

Solidariedade mecânica.

Nas sociedade onde a divisão do trabalho é menos desenvolvida as pessoas se integram em grupos baseados na similitude, ou seja pela semelhança. Exemplos dede sociedades assim podem indicados nas sociedades tribis, indígenas ou não.

Nestes grupos as regras, os fatos sociais se impõem ao individuo com bastante força e não há espaço para grande variedade social.

Este tipo de sociedade é abastante coesa e,  no limite, nas condições de divisão do trabalho mais limitado, o indivíduo é limitado em sua liberdade de um modo em que, do nosso ponto de vista, só pode ser reconhecido como tirânico.

 

Solidariedade Orgânica

O processo de intensificação da divisão do trabalho social  similitude ou semelhança deixa de ser o critério para  integração da sociedade e então iniciamos um novo tipo de sociedade, baseada nma solidariedade orgânica.

Já indicamos o fundamento desta nova sociedade quando lembramos, acima, que nosso tipo de sociedade funciona com uma economia de mercado. Nestas condições cada indivíduo se especializa em poucas ou mesmo em uma única atividade e tem suas necessidades de outras atividades atendidas por outras pessoas. Esta situação cria uma condição objetiva de dependência entre todos. Esta situação é, portanto orgânica, intrínseca ao funcionamento da economia de mercado, que é um estágio adiantado da divisão do trabalho.

Neste tipo de sociedade a solidariedade social orgânica se constrói a partir da interdependência que funciona através da individualização dos indivíduos a partir da especialização funcional (profissional) no contexto da divisão do trabalho social.

Na medida em que é a individualidade, a particularidade que serve de fundamento do cimento social, este tipo de sociedade permite uma liberdade muito mario para o individuo.

Retomando a teoria do fato social podemos dizer que nestas condições a sociedade tem uma capacidade de aplicar o poder de coerção dos fatos sociais sobre os indivíduos que, através dos mecanismos de uma economia de mercado, podem enconrar mecanismos de defesa contra as pressões sociais.

 

Anomia

Durkheim viveu entre 1858 e 1918. Acompanhou portanto os desafios típicos das cidades que se modernizavam no século XIX. Conforme vimos no filme “Daens - um grito de justiça” este era um cenário de muitos problemas sociais. O trabalho de Durkheim sobre a solidariedade social também faz considerações sobre esta questão.

Segundo ele as sociedades podem experimentar períodos de crise, de anomia social. É um perido temporário no qual a sociedade experimenta transformações intensas e rápidas. Isto trás uma consequência para a integração moral da sociedade (os fatos sociais).

Nestas condições a sociedade pode não ser capaz de consolidar os critérios morais (os fatos sociais) adequados para a nova situação. Ao mesmo tempo os fatos sociais típicos do período anterio não servem para a nova realidade.

Esta situação provoca um desgaste na integração da sociedade. Para o indivíduo significa uma experiênca de desorientação moral.

O avanço da sociedade brasileira sobre os territórios indígenas, especialmente a partir dos anos 60, com a construção de Brasília e as obras de integração rodoviária no norte do país. Este processo significou a destruição material das sociedades indígenas e a partir daí das suas bases morais. Considere, por exemplo, os aspectos religiosos. Em sua sociedade o índio conhecia uma série de deuses (ou espíritos) com os quais sabia lidar e aos quais atribuía um valor positivo. Todavia, agora,vivendo com a sociedade brasileira, com os brancos, sua crenças religiosas são apreciadas de modo negativo.

Esta e outras questões indicam o estado de anomia social que se abateu sobreos indígenas e que se expressava de modo mais trágico através de elevadas taxas de suicídio.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Os três porquinhos: Durkheim




Vimos que Augusto Comte criou a palavra “sociologia”. Em sala vimos também que em função disso se dizia que Comte era o fundador da sociologia. As coisas não são exatamente assim. Embora tenha sua importância na história da disciplina, muito mais por conta da doutrina positivista do que em função de criar o nome da disciplina, Comte não é o responsável pelo início da sociologia moderna.





Primeira questão: o que é e o que não é a sociologia

A origem da moderna sociologia é atribuída a outro francês: Emile Durkheim. Para entender porque Durkheim recebeu esta honraria devemos nos perguntar qual a definição mais comum de sociologia? A resposta mais comum indica que se trata da ciência que estuda a sociedade.

Esta é uma resposta correta, porém não é uma resposta exata. Quer dizer, embora a sociologia efetivamente estude a sociedade ela não estuda exatamente a sociedade. Vejamos o que isto quer dizer.

Eu fico doente em sociedade, e também executo uma série de atividades econômicas em sociedade. Diante da definição mais comum de sociologia deveríamos aceitar que ela  também estudaria os processos de enfermidade e as atividades econômicas.

Todavia existem outras ciências que tratam com mais propriedade destes fenômenos. Então , como vamos separar o que é a sociologia do que é a economia ou a medicina (ou o direito, etc.)? Este é o grande legado de Durkheim. Sua obra ele definiu o que seria o objeto de estudo específico da sociologia.

Emile Durkheim (1858-1918)

Admite-se que a sociedade envolve um conjunto de fenômenos sociais. Porém a sociologia desenvolveria sua competência estudando apenas uma pequena quantidade destes fenômenos que seriam chamados de fatos sociais.

Os fatos sociais seriam um conjunto de fenômenos sociais identificados e separados dos demais porque apresentariam algumas características especiais.


Características dos fatos sociais

São três os elementos que definem se um fenômeno social é um fato social.

Em primeiro lugar o sociólogo deve buscar observar se se trata de um fenômeno geral. Um fato social tem como sua primeira característica o fato de que é praticado pela totalidade ou pela maioria dos indivíduos de um grupo.

Além de ser geral é necessário observar de onde surge aquele fenômeno, ou seja, se é um comportamento que indica uma escolha individual ou se é um fenômeno cujas origens e razão de existir se devem a sociedade. Isto por que, para Durkheim, os fatos sociais se distinguem também pelo fato de que são anteriores a existência do indivíduo. Sendo anterior ele também será exterior ao indivíduo. Isto quer dizer que a marca do fato social é sua origem coletiva, social.

Finalmente, os fatos sociais exercem um poder de coerção sobre o indivíduo. Os fatos sociais devem ser vistos como regras. Quando o indivíduo se afasta destas regras ele recebe uma pressão coletiva para que volte a se ajustar ao comportamento socialmente aprovado. Esta pressão é uma evidência do poder de coerção (de pressão) que a sociedade exerce sobre os indivíduos para que se submetam a regra geral.



Exemplo

O nosso vestuário pode ser usado para considerarmos como opera o fato social. Nos vestimos segundo padrões ou regras que são sociais, são fatos sociais.

Em primeiro lugar podemos reconhecer que a maioria das pessoas se veste segundo um padrão ou segundo um conjunto de padrões, de regras. Existem regras que determinam um padrão masculino e um padrão feminino, por exemplo.

Considere na imagem abaixo como a multidão que comparece a Rua Grande, em São Luís, revela claramente a adesão das pessoas a esta regra.

I

Além disso, o padrão de vestuário que adotamos em nossa sociedade não é obra de nenhum de nós individualmente. A escolha sobre o que é adequado vestir é determina pela sociedade, ainda que tenhamos alguma variedade. Ou seja, o vestuário apresenta a segunda característica do fato social, ele existe antes do indivíduo e é externo ao indivíduo. Esta é a razão por exemplo, de não nos vestirmos como o He man.


O fato social, porém é uma regra especial, trata-se sempre de um fenômenos moral. Considere por exemplo o tipo de reação que aquele rapaz acima, vestido de He man, iria despertar caso ele estudasse em sua escola e quisesse assistir aula usando aquela vestimenta.

Provavelmente iria despertar uma série de olhares atravessados e principalmente iria ser alvo de muitas risadas. Do ponto de vista da teoria dos fatos sociais estas reações são uma manifestação da sociedade diante de uma regra (um fato social) sendo quebrada. Devem ser entendidos como uma ação coercitiva (punitiva) da sociedade, uma coerção moral.

O ridículo é um recado indicando que o individuo rebelde assumiu uma atitude tão diferente das nossas regras (o fato social) que desperta uma reprovação moral na forma de risadas e olhares atravessados.

Não é demais repetir que o fato social é sempre moral, assim como a coerção que mobiliza quando é desobedecido. Mesmo quando se pune com violência, como no caso de alguém que é linchado porque cometeu um roubou ou um assassinato, ainda assim esta violência é principalmente moral.

Agora, para ter uma idéia de como funciona este poder de coerção do fato social vamos considera o seguinte.




Imagine que você em sua família uma senhora de certa idade, uns sessenta anos por exemplo. Considere que esta senhora de sua família vai sair para o supermercado ou para a feira comprar alguma coisa. para chegar ao ponto, imagine que ela vai sair para a rua usando a mesma roupa que a senhora abaixo está usando.



Sabendo que há um padrão social (um fato social) que determina as regras de vestimenta também segundo as idades e que a senhora acima está fuginda a este padrão, podemos esperar determinadas reações a atitude da senhora.

Entretanto considere a sua reação. O que você faria?




Provávelmente você iria se sentir atingido pela atitude desta senhora de sua família. Mas você iria se sentir atingido de uma maneira diferente das demais pessoas que estarão na feira ou no supermercado. Você vai se sentir, provavelmente, envergonhado – pois o fato social é sempre moral.

Talvez você venha mesmo a agir fisicamente para impedir a destemida senhora.

Este seu comportamento, mas principalmente a sensação de vergonha que você experimenta, são reflexo do poder de coerção dos fatos sociais.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Economia de Mercado.



Mercado é uma instituição social que realiza a coordenação das trocas entre os indivíduos. O mercado reúne, de um lado, nossas habilidades e, de outro, nossas necessidades.

Funciona assim: cada um de nós possui certas capacidades. Somos eletricistas, advogados, vendedores, pintores, médicos, etc. Porém necessitamos de uma grande quantidade de serviços e produtos durante um único dia em nossas vidas.

Perceba a quantidade de coisa que está diante de você enquanto lê este texto. Imagino que tenha mesa, esta mesa deve ter recebido camadas de produtos e serviços como lixa, polimento, pintura. As roupas que está usando reúnem uma série de outros produtos como a fabricação do tecido, o desenho da roupa, a costura, a tintura, etc.

Tanto a reunião dos elementos que resultaram na fabricação da mesa quanto da roupa incluíram também certa quantidade de pessoas que transportaram produtos para fabricar cada um dos instrumentos usados para produzir sua mesa e roupas. E a coisa se repete: as transportadoras usaram outra série de produtos de terceiros.

Este é o princípio do da economia de mercado: cada um de nós oferece uma habilidade ou uma propriedade e em troca atende suas necessidades.

É importante ficar atento para uma conseqüência especial: numa economia de mercado as relações que temos se dão através de mercadorias.

Mercadorias são as coisas que levamos ao mercado sejam elas habilidades (de pintar ou cantar, por exemplo) ou propriedades (como os itens de uma loja, por exemplo) e também aquilo que corresponde as nossas necessidades e que será oferecido pelos outros.

Numa economia de mercado o dinheiro também é uma mercadoria, a mais especial de todas. Antes da invenção do dinheiro as pessoas precisavam encontrar exatamente um companheiro de trocas que ao mesmo tempo quisesse o que elas ofereciam e possuir precisamente o produto ou habilidade que interessava. A existência do dinheiro torna cada um de nós um mediador para os demais.



Perigos

A existência da economia de mercado faz do capitalismo um sistema de altíssima capacidade de eficiência e expansão. Por outro lado, é exatamente este o maior problema de uma economia de mercado.

Já vimos que a propriedade privada, na medida em que cria o lucro (e também o salário), oferece um grande estimulo ao capitalista para que ele inove continuamente a produção de riqueza da sociedade e partir daí dê início a transformações em todas as dimensões da sociedade.

Este estímulo faz com que na economia de mercado tudo, absolutamente tudo, possa se converter numa mercadoria. Vejamos um exemplo. Imaginemos que você seja queira dizer a uma pessoa que você a ama. Infelizmente, porém, você entende que não é capaz de dizer o tanto que você ama. Talvez porque você é uma pessoa tímida. Talvez porque você ama demais e simplesmente não consegue dar a dimensão de tanto amor.

Numa sociedade capitalista isto não é um problema, ao menos a princípio (já, já vamos dizer porque). Em nossa sociedade há empresários que perceberam que podem alcançar aquele lucro que está no coração do capitalismo atendendo exatamente esta necessidade, que você tem (hipoteticamente falando).

Deste modo se você quer dizer a uma pessoa que a ama e acha que não consegue, não se preocupe, o mercado transforma isto numa mercadoria que você pode comprar, seja com uma telemensagem, seja com um telegrama ao vivo.


 








A questão, porém, é que esta capacidade da economia de mercado em transformar tudo em mercadoria transforma a nós mesmos, os seres humanos, em mercadorias.

Considere o exemplo da malharia que propomos quando falamos da propriedade privada. Na ocasião consideramos uma empresa que tinha um proprietário e dez trabalhadores.

O proprietário atende suas necessidades via mercado oferecendo um produto, malhas. Os trabalhadores, entretanto, só têm a oferecer ao mercado a sua força de trabalho. Por isso se diz que existe um mercado de trabalho no qual se compra e vende força de trabalho, capacidade de trabalho, habilidades profissionais.

Raciocinando com nossa malharia hipotética podemos considerar que dos 10 trabalhadores empregados um deles seja designe e outro dos dez seja um zelador. Você pode imaginar que estes dois trabalhadores oferecem habilidades diferentes e por isso eles são mercadorias diferentes. Isto quer dizer que eles, suas habilidades, tem valores diferentes, são premiados com salários diferentes, e muito provavelmente esta diferença será bastante considerável.

Em conseqüência disso estes dois trabalhadores terão capacidades também diferentes de atender suas necessidades quando se apresentarem no mercado como compradores. Ou seja, há uma grande probabilidade de estes dois trabalhadores não se reencontrarem fora do trabalho. É razoável imaginar que eles morem em bairros diferentes, que usem hospitais diferentes, que seus filhos estudem em escolas diferentes, que usem roupas diferentes, etc.

Num mundo em que tudo pode se transformar em mercadoria isto é claramente um problema.

Você pode explicar o por quê?

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Propriedade Privada

Qualquer que seja a nossa posição política, ou seja, se somos de Direita ou de Esquerda, o que quer dizer: se gostamos ou não do capitalismo; se quisermos definir o que seja este sistema social vamos indicar que ele necessariamente inclui dois elementos fundamentais: a existência da propriedade privada e de uma economia de mercado.

 

Propriedade privada

Quando falamos de propriedade privada estaremos nos referindo á propriedade privada dos meios de produção.

Toda sociedade precisa em primeiro lugar garantir sua existência material. Por isso, o domínio sobre os meios pelos quais se produz as bases materiais da sociedade, sua riqueza, são importante e conferem grande poder.

Uma das principais características do capitalismo é que os instrumentos, os meios, que permitem a existência material da sociedade é apropriado por indivíduos, e por isso se diz que é uma propriedade privada – Outros sistemas sociais podem apresentar uma propriedade coletiva.

Estes indivíduos que tem a propriedade dos meios de produção participam de uma classe social específica, a classe dos capitalistas, a burguesia. A existência da propriedade privada é que dá origem ao poder da burguesia.

 

Exemplo

Como dissemos, no capitalismo a existência material da sociedade é organizada a partir da propiedade privada dos meios de produção. A existência da propriedade privada terá grandes consequências quanto a riqueza produzida. Vejamos um exemplo.

Num sistema capitalista é muito provável que as coisas que você precisa, como o seu uniforme da escola, é produzido por uma empresa que um indivíduo, um empresário, ou um grupo, organizou sabendo que em nossa sociedade há pessoas que precisam de uniformes escolares.

Vamos considerar mais de perto esta empresa de malharia que produz nossos uniformes. Imaginemos que esta empresa possui dez trabalhadores e que tenha apenas um proprietário.

Digamos então que esta malharia tem um faturamento mensal de R$50.000,00.

A principal consequência da propriedade privada diz respeito ao que acontece com este valor criado na empresa. Ou seja, a propriedade privada cria canais de distribuição da riqueza gerada pela sociedade.

Imaginemos  que a riqueza mensal gerada por nossa empresa siga os destinos abaixo:

Riqueza Gerada:

R$50.000,00
Gastos Em Geral (impostos, energia, investimetos, manutenção, etc.) R$30.000,00
Salários dos 10 trabalhadores: R$7.000,00
Lucro: R$13.000,00

Observando a tabela acima podemos considerar o seguinte: os gastos de nossa malharia serão parte da riqueza gerada por outras empresas. Deste modo, para vermos o efeito da propriedade privada para a sociedade como um todo, podemos desconsiderar a linha “gastos em geral” na tabela acima e seguir raciocinando apenas com as linhas “Salário” e “Lucro”.

A propriedade privada, então, é a origem do lucro e do salário. Quando estudamos sobre a modernidade já havíamos indicado a existência de um conflito social típico da modernidade: o conflito entre capital (que é o lucro) e trabalho (que é o salário).

Este conflito entre capital e trabalho (lucro x salário) diz respeito ao modo como será realizada a distribuição da riqueza gerada, ou seja, cada lado da questão deseja aumentar a sua parte e só conseguirá isto diminuindo a parte do outro.

Como o capitalismo é um sistema organizado pela burguesia, os trabalhadores tem menos força para aumentar a sua parte.

 

O lucro

Assim como o salário, o lucro é uma consequênca da propriedade privada. Por outro lado o lucro produz algumas consequências para a organização da sociedade.

O lucro é a motivação do empresário capitalista. A nossa malharia hipotética só existe porque o nosso empresário hipotético identificou que havia uma oportunidade de alcançar um lucro com aquele negócio, do contrário ele jamais arriscaria os recursos dele no negócio.

É em busca do lucro que este empresário irá introduzir inovações tecnológicas que vão melhorar a qualidade e diminuir o preço das malhas.

Ou seja, o lucro é o estímulo que leva os capitalistas a liderarem um processo de modificações que começa na produção e que se espalha para toda a sociedade.

Isto pode ser observado comparando a enorme quantidade de transformações sociais que aconteceram nas últimas décadas a partir de inovações que se generalizam a partir das empresas.

Direita e Esquerda

O tema do capitalismo deve ser estudo sabendo que se trata de um tema que envolve as mais vivas paixões políticas. Era assim antes e ainda é assim hoje!! Para termos uma idéia disto precisamos levar em contra de como são classificadas as idéias políticas.

Desde a Revolução Francesa se usa as palavras “Direita” e “Esquerda” para se referir as posições políticas. Este hábito se deve ao mais absoluto acaso.

A Revolução Francesa é a passagem definitiva da sociedade feudal para o capitalismo. Suas origens se devem a uma grave crise social. Para resolvê-la o Rei convocou os Estados Gerais, um instrumento para a tomada de decisões políticas envolvendo os estamentos feudais (ou Estados): a nobreza (Primeiro Estado), o clero (Segundo Estado) e os demais (Terceiro Estado).

A idéia do Rei era resolver os problemas com um aumento de impostos. Esta solução tinha conseqüências claramente impopulares. Isto porque os dois primeiros Estados eram isentos de impostos. Logo, o peso cairia exlclusivamente sobre o Terceiro Estado.

Posta a questão, surgiu um problema: como seriam contados os votos? Se fosse um voto por estamentos a proposta seria aprovada por dois a um, pois o primeiro e o segundo estado votariam juntos. O Terceiro Estado queria contar os votos por indivíduos, o que garantiria a recusa da proposta.

O clima de agitação tomou conta de Paris e de toda a França. Revoltas impuseram ao Rei a convocação de uma Assembléia Nacional, reprensentando o povo da França e não mais os estamentos medievais.

Na reunião dos delegados da Assembléia, os partidários das transformações da sociedade, com a abolição dos privilégios feudais se sentaram a esquerda é os defensores do status quo, da ordem vigente, ficaram a direita.

Foi assim que estas palavras foram adotadas para identificar as posturas políticas no mundo ocidental, chamando de esquerda indivíduos que desejam transformações imediatas da sociedade e de direita os indivíduos que entendem as mudanças devem ser lentas e que a ordem vigente deve ser preservada e evoluir naturalmente, sem revoluções.

 

Versão Clássica

Ao longo do século XIX, com a vitória da burguesia, a oposição entre Direita e Esquerda ganha uma marcação de origem européia e que se tornou uma versão clássica.

Nesta versão a Direita política inclui os defensores da sociedade capitalista. Os defensores do socialismo ocupam o espaço da Esquerda politica.

Esta diferença entre Capitalismo e Socialismo como marcos da divisão entre Direita e Esquerda é na verdade resultado de um entendimeto sobre o que é a Democracia.

Pensados em si mesmo, Capitalismo e Socialismo representam sistemas de organização da sociedade que divergem fundamentalmente sobre como instituir a distribuição da riqueza.

A partir deste critério a Direita sustenta que o valor fundamental, que define a democracia, diz respeito a garantia da liberdade sobre os demais aspectos. A Esquerda, por seu lado, ensina que não pode ser defino como democrática uma sociedade que não garante a igualdade real e efetiva dos seus membros.

Reconhecer este dilema serve mais nos ensinar que tanto a Direita como a Esquerda oferem argumentos razoáveis a partir dos quais é legítimo defender uma posição ou outra.

 

 

Versão Americanizada

Recentemente a oposição entre Direita e Esquerda vem se modificando, embora não tenha sido abolido o critério clássico descrito acima.

Nos últimos anos, desde a queda do muro de Berlim, em 1989, o mundo todo se acomodou sob o sistema capitalista. Atualmente Cuba, Laos, Coréia do Norte poderiam ser definidos como sistemas sem traços de capitalismo. A China, embora tenha um regime que se define comunista, na prática, entretanto, é uma combinação de economia de mercado e de ditadura.

A falta de uma alternativa concreta ao capitalismo representou certa amenização da versão clássica de separação entre Direita e Esquerda. Em seu lugar, em vários lugares do mundo tem se repetido um tipo de disputa política a partir do padrão típicamente americano, o país do capitalismo, onde nunca hourve grupos socialistas fortes.

Embora também apresentem diferenças sobre como encaminhar políticas sociais e econômicas, nos Estados Unidos a Direita (representado pelo Partido Republicano) e a Esquerda (Partido Democrata) se dividem principalmente sobre questões relacionadas as costumes.

O chamado debate sobre os costumes envolve questões como o casamento gay, politica sobre aborto ou bioética.

Em 2010, pela primeira vez o debate sobre os costumes tomou conta de uma eleiçao presidencial com uma discussão sobre a regulamentação do aborto.

Em relação a este tema, e os demais temas que mobilizam o debate sobre os costumes,  os indivíduos e grupos não se dividem como capitalistas e socialistas, como era na versão clássica da oposição Direita/Esquerda. Os debates sobre os costumes classifica as posições políticas em Conservadores e Progressistas.

Conservadores são os indivíduos que entendem ser necessária a defesa de um conjuntode valores básicos, entre os quais a defesa da vida, no caso do tema do aborto.

Progressistas, por sua vez, entendem que os costumes se alteram ao longo da história e que alguns dos costumes restringem a liberdade e o direito de certos grupos e que, por isso mesmo, podem e devem ser modificados.

A história da sociologia no início do capitalismo moderno


Capitalismo e sociologia

O mundo moderno é o mundo criado pelo capitalismo. O nascimento do mundo moderno, que vimos na segunda unidade, através do desenvolvimento e também da mistura de urbanização e de industrialização e mais individualização e secularização foi uma condição para o surgimento da sociologia.
A idéia de uma ciência para estudar a sociedade já existia, mas ela só se estabelece na prática com a sociedade moderna. Mais até que isto: a sociologia nasce como um instrumento para lidar com o mundo moderno.
Para reconhecer isto basta lembrarmos qual a definição mais comum do que seria a sociologia: seria o estudo da sociedade. Neste caso isto quer dizer que seria a ciência que ajudaria a entendermos como funciona a sociedade.
Conforme vimos no filme Daens – um Grito de Justiça, no século XIX o mundo moderno se estabelecia. Porém isso acontecia de um modo assustador, através dos chamados problemas sociais, mesmo nas nações mais ricas.

Cartaz do Filme “Daens – um grito de justiça”

A sociologia ajudaria a compreender porque a sociedade passava por este momento. Na verdade esta ciência da sociedade faria mais que isto, ela seria semelhante a instrumento de conserto, que ajudaria a resolver os problemas sociais: iria esclarecer como funciona a sociedade e indicaria o que deveria ser feito para que as coisas funcionassem corretamente.
Hoje em dia ainda alimentamos esta mesma crença na ciência, na sua capacidade de resolver nossos problemas. A sociologia, porém, já não se pensa e nem é reconhecida da mesma forma.
Esta crença na ciência que está na história da sociologia tem um representante especial em um francês chamado Augusto Comte.

Augusto comte (1798 – 1857)

Comte criou a teoria que é a principal corrente de pensamento que entende a ciência como um instrumento capaz de mudar nosso mundo. Esta teoria, ou doutrina, foi o positivismo.
O positivismo foi uma doutrina filosófica que dizia que seríamos capazes de criar um conhecimento verdadeiro, independente de nossas características individuais. Existem implicações desta maneira de conceber a ciência, mas não trataremos delas aqui. Apenas deixamos registrado que esta idéia, de que é possível um conhecimento verdadeiro (positivo, como se dizia na época), é fundamental para que se possa esperar que uma ciência da sociedade possa responder aos problemas sociais que nasciam com a sociedade moderna.
Além de ser o principal representante deste espírito da época que esperava da ciência uma resposta para os problemas do mundo moderno, Comte também é lembrado na história da sociologia por outro motivo, foi ele quem criou a palavra sociologia.


O positivismo no Brasil.
A doutrina positivista que participa do nascimento da sociologia teve uma grande importância política, especialmente na América Latina. No caso do Brasil, os grandes eventos políticos da segunda metade do século XIX, o movimento abolicionista e o movimento republicano, eram liderados por positivistas.
Os positivistas fizeram outros tipos de intervenções na história do Brasil. Por exemplo, o engenheiro Raimundo Teixeira Mendes, um maranhense da cidade de Caxias e sobrinho do poeta Gonçalves Dias, um positivista, foi quem apresentou ao recém estabelecido governo republicano um projeto que alterava a bandeira brasileira.
A bandeira criada por Teixeira Mendes trás a marca do positivismo com uma adaptação do lema política de Augusto Comte que era: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”.
Nossa bandeira ficou com o já conhecido “Ordem e Progresso”, mas sem o amor...


Busto de Teixeira Mendes (1855 – 1927)
Mais informações na Wikipédia

Outra herança dos positivistas na forma como entendemos nossa história diz respeito ao grande mártir brasileiro, o Tiradentes.
Em dado momento Comte resolve que o positivismo deve também se converter numa religião. Nesta fase ele faz uma adaptação de um instrumento bastante comum entre os católicos que é o de guardar a memória de certos indivíduos cuja devoção a Deus e também cujas demonstração de fé são relevantes e significativas para a Igreja, estes indivíduos são os santos.
Comte pretende fazer algo semelhante a canonização dos santos. Sua idéia é que a Igreja do Apostolado Positivista possa promover a memória dos grandes nomes da humanidade, de indivíduos que contribuíram para o bem comum ao longo da história.
No caso do Brasil, com o movimento republicano, este hábito positivista vai recriar a imagem de Tiradentes. Até então Joaquim José da Silva Xavier era um ilustre desconhecido e por motivos razoáveis.
O crime que o condena, no ano de 1792, é o crime de lesa-majestade. Este é o nome dado ao crime que se comete contra a pessoa do Rei/Rainha, que no caso era a Rainha de Portugal D Maria I. Esta Rainha foi a mãe e D. João VI e assim avó de D. Pedro I e bisavó de D. Pedro II. Sabendo que são os descendentes de D Maria quem lideram a independência do Brasil compreende-se por que Tiradentes não é lembrado pela história do Brasil durante todo o Império.
Foram os positivistas que “ressuscitaram” Tiradentes. Em sua versão positivista ele é apresentado com um cidadão exemplar cuja coragem de lutar contra os opressores e seu  destemor em morrer pela liberdade é destacada.
Estes atributos podem ser reconhecidos inclusive nas imagens que temos dele.  Abaixo vemos duas imagens famosas de Tiradentes.

Martírio de Tiradentes, óleo sobre tela de Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo (1854 — 1916).
Fonte: wikipédia

Óleo sobre tela de Leopoldino de Faria (1836-1911)
retratando a Resposta de Tiradentes à comutação da pena de morte dos Inconfidentes.
Fonte: Wikipédia


Percebe ambas as imagens apresentam Tiradentes associando-o a grandes nomes da cultura ocidental. No primeiro quadro ele se parece com Jesus. No segundo fica retratado numa cena que lembra as descrições do julgamento do filósofo grego Sócrates.

sábado, 18 de junho de 2011

Pobreza e cidadania no maranhao

A história recento do Maranhão é marcada pela vexatória situação de ver a cada ano a repetição de um quadro triste. Trata-se do continuado destaque que o Estado recebe quando o assunto são indicadores sociais negativos.

Apenas para exemplificar, já com os dados do censo de 2010, ficamos sabendo que a cada 100 crianças ascidas no Nordeste brasileiro 10 são maranhenses e ao mesmo tempo, quando olhamos um indicador negativo associado a este número o Maranhão ganha destaque. É que a cada grupo de 100 crianças deste mesmo nordeste que morre com menos de 1 ano de idade o número de maranhenses aumenta em relação ao que deveria ser, ois são 20 bebês maranhense que morrem com menos de um ano em cada grupo de 100 destes casos ocorridos no Nordeste.

 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 14 de março de 2011

Existe uma sociedade weberiana?

texto retirado do site da Revista Cult: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/existe-uma-sociedade-weberiana/

 

Independentemente da resposta, a influência de Weber ultrapassou seus próprios cálculos

Publicado em 12 de janeiro de 2011

Michel Misse
Ilustração: André toma

Embora seja usual falar-se de uma sociologia “weberiana” e de sociólogos “weberianos”, ou de uma escola “weberiana”, não podemos aceitar rigorosamente essas classificações, a não ser quando se pretende demarcar uma tendência dominante, em certos autores e obras, da influência de conceitos e perspectivas desenvolvidos nos diferentes trabalhos de Max Weber. Mesmo assim, não há nada, nesse caso, comparável, por exemplo, seja à apropriação e desenvolvimento das teorias de Marx no marxismo, seja à apropriação e desenvolvimento das teorias de Freud na psicanálise. Não há nada na obra de Weber que permita desenvolvimento similar ao do marxismo e ao da psicanálise, e isso por duas razões.

Em primeiro lugar, Weber não propõe uma revolução científica ou um deslocamento teórico fundamental, um novo paradigma científico, e nem foram esses os efeitos epistemológicos de sua obra, como, ao contrário, parece acontecer com as obras de Marx e de Freud (tal, pelo menos, como reivindicam marxistas e psicanalistas). O próprio Weber condenava, no marxismo e na psicanálise, sua unilateralidade radical, que os lançava, em seu entender, na metafísica e na disputa de pressupostos últimos aos quais a ciência não poderia responder.

Em segundo lugar, Weber reivindica a tradição acadêmica e científica da pesquisa histórico-social de seu tempo, mesmo quando de sua contribuição original para essa ciência, a sociologia, que também se desenvolve, independentemente de sua obra, e com base em outros paradigmas, em outros lugares. Ainda que proponha métodos e conceitos suficientemente abrangentes e rigorosos para entronizá-lo como fundador de uma escola, sua obra não produziu influência dessa maneira, mas de outra, mais difusa, e também mais coerente com o sentido que a distinguia das demais.

Weber não formou uma escola, como aconteceu com Marx e Freud, e mesmo com Durkheim. Não teve discípulos diretos, com os quais precisasse retificar constantemente o desenvolvimento de seu próprio paradigma. No entanto, é indubitável que no desenvolvimento da sociologia, tal como vem se realizando desde o início do século, a contribuição weberiana é decisiva, fundamental mesmo, por demarcar um de seus principais paradigmas. Curiosamente, embora Durkheim tenha uma posição análoga à de Weber por ter também contribuído com outro paradigma fundamental, e ao mesmo tempo divergente do dele, não é usual falar atualmente de sociólogos “durkheimianos” ou de uma sociologia “durkheimiana”, e isso quando se sabe que a influência de Durkheim foi mais sistemática que a de Weber, a ponto de ter existido uma “escola durkheimiana” na França, o que nunca ocorreu com Weber, nem mesmo na Alemanha.

A influência da obra de Weber, embora crescente ainda quando ele estava vivo, não era do tipo que possibilitasse uma escola. Mesmo essa influência foi drasticamente interrompida, na Alemanha, 12 anos após sua morte, pela chegada dos nazistas ao poder. Suas principais obras, com exceção de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, permaneceram esgotadas e sem reedições durante quase 20 anos, e em grande parte espalhadas em revistas e periódicos de pouco acesso ao público não germânico. Apesar disso, sua influência foi decisiva em obras que foram publicadas antes da Segunda Guerra, algumas das quais vieram conformar grande parte do quadro atual da sociologia. Entre essas obras, basta citar Ideologia e Utopia, de Karl Mannheim; História e Consciência de Classe, de Georg Lukács; Estrutura da Ação Social, de Talcott Parsons; e Fenomenologia do Mundo Social, de Alfred Schutz.

O weberianismo como contrassenso
Desde aqui já se pode notar a abrangência e o tipo de influência que a obra de Weber começará a exercer. Nenhum desses trabalhos é “weberiano” e, no entanto, todos estão numa relação fundamental com a obra de Weber; em todos eles, também, a posição weberiana é posta em situação de interlocução, de diálogo com outros pensadores-chave; Lukács e Mannheim, de modo diferente e pesos desiguais, põem Weber em relação com Marx, e daí destilam suas contribuições originais; Parsons põe Weber em relação com Durkheim e Pareto; Shutz coloca Weber em relação com Husserl.

Para cada uma dessas posições, enfatiza-se um aspecto da obra de Weber. Pode-se dizer que são Webers diferentes os que saem dessas posições: um Weber subsumido no marxismo hegeliano de Lukács; um Weber que retifica e modera Marx, na sociologia do conhecimento de Mannheim; um Weber fenomenológico, intuicionista, neoidealista, na “síntese” de Shutz. No campo substantivo da influência, a abrangência e a variedade não são menores. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é o rosto mais badalado da influência, mas não é nem a principal nem a mais duradoura, apesar de ter produzido um dos grandes veios polêmicos do século. Weber trabalhou sobre campos extraordinariamente diversos e sua influência acompanha essa diversidade, que vai do direito à sociologia da música, da história econômica à sociologia das religiões, da filosofia da ciência à política alemã. Conceitos como “tipo ideal”, “ação social”, “compreensão”, “autoridade”, “dominação”, “carisma”, “vocação”, “racionalidade”, “burocracia”, “estamentos”, “legitimidade” e muitos outros estão inteiramente orientados, na sociologia contemporânea, pela influência de Weber.

O peso das interpretações pioneiras de Weber, em especial por sua influência sobre toda a sociologia acadêmica mundial, aquela que veio da obra de Talcott Parsons, vem passando por ampla reavaliação crítica há quase cinco décadas. Os resultados dessa reavaliação, que incluiu um renovado interesse dos marxistas por sua obra, têm possibilitado – 90 anos após sua morte – o conhecimento de um Weber muito mais profundo e contemporâneo do que as primeiras interpretações poderiam fazer supor. Não é exagerado afirmar que sua influência, hoje, é comparativamente mais abrangente, mais sistemática e mais rigorosa do que em sua própria época ou em qualquer outra, não obstante manter sua característica de não formar escola. O propalado “weberianismo” é um contrassenso com a própria perspectiva científica de Weber, e o próprio Weber testemunha contra esse equívoco: “Na ciência, sabemos que nossas realizações se tornarão antiquadas em dez, vinte, cinquenta anos. É esse o destino a que está condicionada a ciência: é o sentido mesmo do trabalho científico… Toda realização científica suscita novas ‘perguntas’: pede para ser ‘ultrapassada’ e superada. Quem deseja servir à ciência tem de resignar-se a tal fato”.

A influência de Weber, apesar disso, ultrapassou seus próprios cálculos e merece uma reflexão porque é isso que ainda legitima o emprego de expressões como “weberianismo”. A ciência social carrega a bendita maldição filosófica de sua origem: a política. E como a filosofia e a política, o marxismo e a psicanálise, a sociologia precisa desenvolver-se renovando sempre suas relações teóricas com seus pais-fundadores: a reinterpretação das obras clássicas acompanha e indica esse desenvolvimento, tanto quanto os avanços obtidos nos campos substantivos (empírico e teórico). Não é impossível escrever uma história da sociologia com base na sucessão das reinterpretações de seus clássicos. Essas reinterpretações são tão inesgotáveis quanto sua tendência para avançar para além do que estava originalmente escrito, conferindo-lhe uma nova dimensão, só possível pelo avanço substantivo efetivamente realizado. O que define uma obra como “clássica” é exatamente isto: manter-se contemporânea.

A influência disseminada
Talcott Parsons, cuja obra dominou a sociologia norte-americana por mais de duas décadas (1950-1960) e exerceu – e ainda exerce (embora seja declinante) – influência sobre toda a sociologia acadêmica mundial, travou contato com a obra de Weber ainda nos anos 1930, na Alemanha. Sua tese de doutoramento versava sobre o conceito de capitalismo em Weber e Sombart, o que lhe permitiu preparar o terreno teórico sobre o qual desenvolveria, em 1937, uma original tentativa de síntese sociológica, a primeira elaboração de sua teoria geral da ação. O livro, um grosso calhamaço de mil páginas, intitulado Estrutura da Ação Social, dedicou quase um terço das páginas à interpretação parsoniana de Weber. No entanto, sua apropriação de Weber caracteriza-se pela ênfase posta sobre as normas e valores sociais, em função de sua preocupação em construir as bases de uma teoria da integração social. Se isso lhe permitiu aproximar Weber de Durkheim muito mais facilmente do que é efetivamente possível, facilitou, no entanto, uma apropriação da obra de Weber nos Estados Unidos que, além de incorreta e problemática, enfatizava excessivamente sua utilização conservadora. No entanto, a influência de Weber na sociologia norte-americana, até então pequena, pegou carona no funcionalismo parsoniano e cresceu, até que no fim dos anos 1960 a revisão interpretativa de suas contribuições começasse a ser feita, resgatando-o contra Parsons. Quanto a isso, o pioneiro foi C. Wright Mills, cuja obra reflete uma influência weberiana bastante diferente daquela encontrada em Parsons e sua escola.

Se Parsons procurou aproximar Weber do funcionalismo durkheimiano, Wright Mills fez a aproximação com a tradição marxista, extraindo daí não só uma interpretação, mas um efeito – em suas próprias obras – crítico e politicamente renovador. Mills foi praticamente uma voz isolada numa América conservadora e exposta ao maniqueísmo da Guerra Fria, e uma voz que se calou precocemente (ele morreu aos 47 anos, em 1961). Apesar disso, sua influência na renovação antiparsoniana da sociologia norte-americana dos anos 1970 deveu-se, em grande parte, à extração marxista de sua apropriação de Weber, que lhe permitiu enfatizar, ao contrário de Parsons, os conceitos de classe, de interesse e de conflito. No entanto, ao contrário daquele, Mills jamais tentou uma sistematização conceitual que lhe permitisse construir uma abordagem tão abrangente quanto a parsoniana. Por isso, sua contribuição terminou confinada à sua época.

Lukács, o grande pensador marxista, frequentou assiduamente o Círculo de Heidelberg, que se reuniu na casa de Weber por quase uma década. Nos dois últimos anos da vida de Weber, quando já se tornara marxista, Lukács, ainda sob sua influência, redige alguns dos trabalhos que vão compor seu livro mais célebre. Além de abundantes referências aos trabalhos de Weber, Lukács promove uma inusitada aproximação marxista com a problemática weberiana da “racionalização”, cuja influência posterior não deve ser negligenciada. Mannheim, que foi chamado de “marxista burguês” e de weberiano “marxista” (sic), escreveu suas principais obras entre as décadas de 1920 e 1940. Sua influência, particularmente no campo da sociologia do conhecimento, é decisiva, e tão grande quanto sua pretensão de construir uma ponte entre Weber e Marx que resolvesse algumas das antinomias postas por essa relação. Sua influência sobre Mills permitiu a este se apartar da todo-poderosa interpretação parsoniana de Weber. Do mesmo modo, sua obra permitiu aos funcionalistas manter uma porta aberta ao marxismo (pelo menos nessa área da “sociologia do conhecimento”), como no estudo de Robert K. Merton sobre sociologia da ciência.

No pós-guerra, a influência de Weber alastra-se pela Europa e pela América. Raymond Aron, na França, forja o conceito de “sociedade industrial” e se apoia em Weber para criticar o marxismo. Ralf Dahrendorf, na Alemanha, sob forte influência weberiana, revisa o conceito de classe e, como Aron, substitui capitalismo por “sociedade industrial”, para enfatizar a dimensão mais abrangente (principalmente política) dos conflitos sociais do capitalismo tardio. A sociologia inglesa renova-se com a influência de Weber, principalmente nas obras de John Rex, J. Goldthorpe, David Lockwood, Frank Parkin e Anthony Giddens. Na França, Michel Crozier e Alain Touraine estudam a burocracia e a classe trabalhadora em aberto diálogo com as hipóteses weberianas, e Pierre Bourdieu reinterpreta Weber em seus trabalhos de sociologia da cultura.

Apesar da forte influência de Parsons, a sociologia norte-americana reencontrou Weber de diversas maneiras, desde o pós-guerra até hoje. Obras muito importantes como as de Seymour M. Lipset, Reinhardt Bendix, Robert Bellah, Clifford Geertz, Randall Collins e S. Eisenstadt, entre outros, foram desenvolvidas em constante recuperação e reinterpretação das hipóteses weberianas. Tendências que aparecem na época da Guerra Fria, como a sociologia fenomenológica, a etnometodologia, a sociologia radical, o interacionismo simbólico, retomam Weber exatamente onde Parsons o havia recalcado: no seu “idealismo”, na sua “sociologia compreensiva” e nas minuciosas questões metodológicas.

Em compensação, o “materialismo” de Weber é recuperado pelo marxismo do pós-guerra, que antes lhe havia reservado a indiferença dogmática ou o ataque superficial. Essa indiferença não existiu nos clássicos do marxismo, mas tornou-se dominante no período stalinista. Kautsky, Bukhárin, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Lukács e Max Adler citam Weber e quase sempre em apoio às suas próprias ideias. Mas o conhecimento da obra de Weber era ínfimo, se comparado ao que os marxistas contemporâneos passam a ostentar a partir dos anos 1960. A influência de Weber na Escola de Frankfurt é reconhecida e bastante significativa, principalmente na obra de Habermas. A crítica superficial foi abandonada e o rigor com que muitos marxistas reavaliam a obra de Weber não fica nada a dever ao ostentado pelos “weberianos”.

Uma verdadeira história das reinterpretações de Weber e de suas disputas teria, agora, que descer ao campo temático e conceitual. Acompanhar a disputa dos conceitos, a detecção de suas ambiguidades originais, o aparecimento de novos problemas sobre os escombros de problemas que pareciam resolvidos, enfim, teria de ser uma história da constante reatualização de Weber, como a feita brilhantemente por Wolfgang Schluter nas últimas décadas. Aqui entrariam, por exemplo, a penetrante e nem sempre admitida influência de Weber sobre as obras seminais de Norbert Elias e Michel Foucault, apenas para citar dois nomes que continuam em evidência. Naturalmente, isso não pode ser feito aqui. De qualquer modo, será feito por cada sociólogo, em sua área específica de atuação. Isso será inevitável sempre que se descobrir que o sociólogo “weberiano” se dedica a uma coisa “que na realidade jamais chega, e jamais pode chegar, ao fim”.

Michel Misse é professor de sociologia da UFRJ

Perfil biográfico – Max Weber (1864-1920)

Max Weber é conhecido como um dos fundadores da sociologia moderna, ao lado de pensadores como Vilfredo Pareto (1848-1923), Émile Durkheim (1858-1917) e Georg Simmel (1858-1918). Seu pensamento é marcado por uma crítica do materialismo histórico, que, em seu dizer, petrifica as relações entre as formas de produção e de trabalho e as outras manifestações culturais da sociedade. Para ele, o pensador social deve estar disposto a reconhecer a influência que as formas culturais, como a religião, por exemplo, podem exercer sobre a própria estrutura econômica.Karl Emil Maximilian Weber nasceu em Erfurt, em 1864, em uma família protestante.A partir de 1869, instala-se com a família em Berlim. Seu pai foi deputado do Partido Nacional Liberal, e, graças a ele, Weber, desde cedo, teve contato com homens políticos e pensadores influentes que eram frequentemente convidados à sua casa.

O jovem Max, entediando-se na escola e tendo pouco contato com os colegas de sua idade, tornou-se um leitor insaciável. Suas leituras (Cícero, Maquiavel, Kant etc.) testemunham sua grande precocidade intelectual. Terminada sua formação básica, Weber inscreve-se na Faculdade de Direito de Heidelberg, seguindo igualmente cursos de economia política, filosofia, história e teologia.Em 1889, Weber conclui seu doutorado sobre o desenvolvimento das sociedades comerciais nas cidades italianas da Idade Média. Em 1891, termina o trabalho A Importância da História Agrária Romana para o Direito Público e Privado, que o qualifica para ser professor na universidade. Esses anos foram decisivos na formação de Max Weber, porque o fizeram se interessar pelos problemas sociais de sua época.Aos 29 anos, em 1893, assume o cargo de professor de história do direito romano e de direito comercial na Faculdade de Berlim. Casa-se com Marianne Schnittger, ícone da causa feminista e intelectual engajada em questões políticas. Ela terá um papel decisivo na edição da obra de Weber, supervisionando principalmente a publicação dos escritos póstumos de seu marido, em especial de sua obra magna Economia e Sociedade.

De 1897 a 1903, Weber sofre de uma grave depressão nervosa, sendo obrigado a interromper seu magistério. Em 1903, retomando suas atividades intelectuais, reorienta suas pesquisas para a sociologia. É nesse contexto que ele publica A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em 1909, funda a Sociedade Alemã de Sociologia.

Durante a Primeira Guerra Mundial, Weber inicia a redação de seu vasto projeto de sociologia comparada das religiões mundiais. Em 1919, muda-se para Munique, a fim de ocupar a cátedra de sociologia que a universidade havia criado especialmente para ele. É nessa ocasião que ele pronuncia duas de suas mais conhecidas conferências: “A Ciência como Vocação” e “A Política como Vocação”.

Weber morreu subitamente em 1920, em consequência de uma pneumonia mal tratada.

Durkheim e a vida social como essencialmente moral

texto retirado do site da Revista Cult: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/durkheim-e-a-vida-social-como-essencialmente-moral/

 

O sociólogo tinha a consciência de que a validade de seu projeto precisava ser afirmada em diversas frentes

Publicado em 12 de janeiro de 2011

Alexandre Braga Massella
Ilustração: André Toma

Caso os autores aos quais atribuímos hoje o epíteto de pai ou fundador da sociologia soubessem da posição que a posteridade lhes reconheceu na gênese de uma disciplina, Durkheim talvez fosse o único que tomasse isso como o sinal de que seu projeto intelectual foi, de alguma forma, bem-sucedido.

Defensor intransigente da possibilidade de uma sociologia científica e autônoma, que tomasse de outras ciências apenas sugestões úteis, Durkheim tinha a consciência de que a validade de seu ambicioso projeto precisava ser afirmada em diversas frentes. A frente de batalha mais geral alinhava argumentos de ordem filosófica e metodológica em um discurso que abordava, do ponto de vista da fundamentação da sociologia, o problema clássico do conhecimento: a definição do objeto a ser estudado e da relação que o sujeito do conhecimento deveria manter com esse objeto. As Regras do Método Sociológico, publicado em 1894, é o coroamento desse esforço. A definição do fato social como maneiras de agir, pensar e sentir que se impõem ao indivíduo delimita o domínio da sociologia. Durkheim exige do sociólogo uma atitude de desconfiança em relação ao saber anterior de que todos dispomos sobre a realidade social, pelo mero fato de participarmos dela.

Permeia todo o livro uma ideia cara a Durkheim: há fatos que são o que são porque a sociedade tem as características que tem. Durkheim explorou de forma sistemática os atributos do meio social em suas explicações: o poder de atração que o grupo exerce sobre seus membros, o poder de regular a conduta do indivíduo, a frequência de interações são exemplos de fatores que caracterizam o meio social e que Durkheim empregou em seu clássico estudo sobre o suicídio.

Mas o discurso metodológico não era suficiente aos olhos de Durkheim. No seu entender, a reflexão metodológica não é anterior à ciência, sendo apenas uma explicitação e articulação de procedimentos já empregados pela prática científica. Ou bem a ciência existe, ainda que pouco consciente de seus princípios e de seus fundamentos, ou não existe e não será a reflexão metodológica que decretará sua existência. Daí Durkheim afirmar, em seus ensaios metodológicos, que a sociologia é um ponto de vista que vem se afirmando nas diversas ciências sociais, que desponta nos bons trabalhos de história do direito, da religião ou da economia. Não basta, portanto, a sustentação filosófica ou metodológica da sociologia; é preciso praticá-la, é preciso mostrar, por meio de resultados substantivos, por meio da explicação de problemas bem delimitados, que o método preconizado é fértil. A Divisão do Trabalho Social (1893), tese anterior a Regras do Método Sociológico, O Suicídio (1897) e As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912) são as três grandes obras em que Durkheim desenvolveu, na prática da pesquisa, seu método.

Intervenção na vida social
O empenho de Durkheim em defesa da sociologia foi além dos aspectos teóricos e metodológicos. A relevância prática da disciplina e sua inserção institucional, isto é, seu ensino na universidade francesa, também mereceram sua atenção. “Nossas pesquisas não seriam dignas de uma hora de trabalho, se elas só tivessem um interesse especulativo”: a frase, escrita no Prefácio à primeira edição de A Divisão do Trabalho Social, sugere bem a importância que Durkheim dava ao problema da intervenção na vida social, embora não baste para entender a dimensão dessa intervenção ou sua articulação com a reflexão científica. A contribuição prática não se resumiria à identificação dos meios mais eficientes para a realização de fins estabelecidos por razões extracientíficas. A sociologia teria algo a dizer sobre os fins que orientam nossa conduta, embora não caiba a ela elaborar ou decretar novos ideais. Sua tarefa seria mais modesta: explicitar os ideais para os quais uma sociedade tende confusamente e explicá-los, mostrando como estão enraizados em certas condições de existência e como desempenham certas funções. A reconstrução das tendências evolutivas da sociedade permitiria entender a natureza das crises sociais. A sociologia, devidamente praticada, identificará quais valores e ideais estão em harmonia com as tendências gerais da evolução social e quais são estranhos ou contrariam tal evolução.

Exemplo dessa preocupação é a pergunta que orienta seu estudo sobre a divisão do trabalho social. Trata-se de saber se o ideal moderno da especialização, isto é, o ideal segundo o qual devemos nos especializar e nos tornar indivíduos capazes de desempenhar de forma satisfatória uma função determinada – indivíduos que se realizam cumprindo um papel especializado e limitado, sacrificando, portanto, algumas de nossas faculdades – seria um ideal em consonância com o avanço cada vez maior da divisão do trabalho social.

A contribuição prática que Durkheim esperava da sociologia está vinculada também à sua interpretação da realidade social e política da França. Nascido em 1848, em Épinal, na região da Lorena, Durkheim acompanhou, ao longo de seu desenvolvimento intelectual, o advento e as crises vividas pela Terceira República Francesa. A chamada Terceira República, proclamada em 1870 ainda em meio à Guerra Franco-Prussiana, fez da instauração de uma ordem social liberal uma de suas metas, o que significou a introdução de inovações institucionais consideráveis. Ampliar direitos civis e políticos, arquitetar um regime representativo eficaz, implantar um sistema de educação laico: tarefas árduas, menos pela novidade das reformas, algumas das quais apenas aceleravam mudanças em curso desde os anos 1860, do que pelas resistências conservadoras suscitadas. Para Durkheim, o que estava em jogo nesta nova ordem liberal era a conclusão da obra iniciada com a Revolução Francesa.

Quase um século depois, a nova ordem social iniciada com a revolução estava não só inconclusa como corria o risco de ser desfeita. Os conservadores ainda dispunham de posições-chave no exército, na burocracia estatal, na universidade e na Igreja. Eram adversários do regime republicano e dos valores mais caros à ordem liberal – a razão científica, o individualismo, a indústria – e não abriam mão, é claro, dos alicerces da ordem social conservadora: o domínio cultural da Igreja, um Estado autoritário e uma hierarquia social rígida e refratária aos influxos das ideias igualitárias.

A crítica revolucionária, o abalo causado pela Comuna de Paris em 1871 e a consolidação do socialismo como uma força política e social expressavam o descontentamento radical com a ideia de uma França liberal. Em face das pressões conservadoras e radicais, a França parecia mais uma vez destinada a oscilar entre as tentativas de transformação radical e as recaídas autoritárias e reacionárias. Na visão de Durkheim, as conquistas da sociologia poderiam ajudar na sustentação de uma nova doutrina liberal capaz de constituir uma base ideológica consensual para a Terceira República.

Mas Durkheim também é cauteloso quanto às contribuições da sociologia. A sociologia ainda está em sua infância e, portanto, precisa reconhecer o caráter limitado e provisório do conhecimento que obtém. Ela ainda precisa levantar muitos dados, aperfeiçoar suas técnicas, aprimorar seus recursos conceituais e teóricos. Precisa, sobretudo, superar o estágio das sínteses filosóficas que tentavam captar, prematuramente, a essência da vida social. Cabe à sociologia entregar-se ao estudo de problemas delimitados, divididos entre diversos especialistas. A compreensão da sociedade exige um trabalho de equipe.

A fundação da revista Année Sociologique, em 1898, da qual Durkheim participou ativamente, mostra bem como ele levava a sério a ideia da ciência como um empreendimento coletivo. A revista reuniu um conjunto de intelectuais simpáticos às ideias de Durkheim, ainda que não cegamente obedientes a elas. A consolidação de sua sociologia como escola de pensamento foi um dos resultados da revista. Dividida em várias seções que mapeavam o território da disciplina – sociologia jurídica, moral, religiosa, econômica –, a revista resenhava a literatura sociológica e publicava artigos originais (vários artigos de Durkheim foram publicados aí pela primeira vez).

A propagação da sociologia de Durkheim deu-se também pelos canais institucionais da universidade francesa. Não que esses canais estivessem prontos. A sociologia não era, na época, uma disciplina institucionalizada, isto é, não dispunha de um curso universitário em que fosse ensinada e nem sequer figurava no currículo de outros cursos. O próprio Durkheim tinha formação de filósofo e começou ensinando filosofia em liceus, atividade que exerceu de 1882 a 1887. Em 1887 foi criado, na Universidade de Bordeaux, um posto em “ciência social e pedagogia” especialmente para Durkheim, que lecionou aí cursos sobre a educação, a família, a religião e o socialismo, alguns dos quais publicados postumamente. Em 1902, ingressou na Sorbonne, novo passo na institucionalização da disciplina.

A interpretação da sociedade moderna
A concepção de sociedade elaborada por Durkheim faz da vida social um fenômeno essencialmente moral. Para Durkheim, sempre que há sociedade há altruísmo e, portanto, vida moral. Nossa conduta propriamente social não se orienta apenas para a satisfação de nossos interesses e não faz dos outros um meio para a obtenção de nossos fins. Isso não quer dizer que inexistam conflitos na sociedade, mas que a fonte deles é o mundo inerentemente desregulado dos interesses econômicos, mundo que a sociedade, em condições normais, tende a regular. A vida social exige de nós sacrifícios, renúncias, mas o grupo possui um prestígio e uma autoridade tal que desempenhamos nossos deveres motivados pelo sentimento de obrigação, pelo senso do dever e não pelo temor às sanções.

A aplicação dessa visão de sociedade ao mundo moderno exige que Durkheim conteste a visão de sociedade presente na economia clássica. Durkheim precisa mostrar que não é suficiente, para dar conta da coesão que a sociedade moderna apresenta, considerá-la como resultado de uma miríade de ações egoístas, em que os indivíduos agem orientados apenas pela maximização de seus interesses. É contra essa visão, predominante na economia e no liberalismo clássicos, que Durkheim se volta em A Divisão do Trabalho Social. Sua ideia é que a divisão do trabalho não é apenas um fenômeno econômico, como queriam os economistas, mas um fenômeno social e, portanto, gerador de vínculos de solidariedade. A divisão do trabalho não gera apenas interdependência objetiva, no sentido de que em uma sociedade em que o trabalho social está dividido dependemos uns dos outros para a satisfação de nossos interesses. Durkheim quer ir além dessa ideia, já devidamente explorada pelos economistas clássicos. A divisão do trabalho teria um efeito muito maior, alcançando as camadas mais profundas da consciên- cia moral: além de fazer com que os homens se ajudem mutuamente, quer queiram quer não, faz com que se respeitem, gerando um sistema de obrigações morais. Participando da divisão do trabalho social, cada membro da sociedade sente a importância dos demais, compreende que ninguém basta a si mesmo e que são todos parte de um todo maior. É esse efeito moralizador que Durkheim ressalta em sua reação à interpretação econômica da divisão do trabalho, que enfatizava muito mais os aspectos materiais, como o aumento de produtividade.

A divisão do trabalho é um processo que atravessa a história da sociedade humana, que não começa em um momento preciso, mas vem se afirmando ao longo do tempo e atinge na sociedade moderna um ponto culminante. Como fonte de moralidade e, portanto, de ordem social, cabe esperar que a sociedade moderna, que testemunha o auge desse processo, se beneficie de suas virtudes morais. Durkheim sabe, porém, que a sociedade moderna é permeada por conflitos e que o conflito entre capital e trabalho é um dos mais ameaçadores à ordem social.

Durkheim tratou de alguns problemas sociais característicos da sociedade moderna, mas não os associou à divisão do trabalho como tal e sim ao que chamou de formas anormais da divisão do trabalho. A raiz dos problemas não estaria no princípio estrutural que dá sustentação à sociedade moderna – a divisão do trabalho social –, mas no fato de que esse princípio estrutural ainda não pode gerar todos os seus efeitos benéficos, seja porque não teve tempo suficiente para isso, seja em razão dos obstáculos apresentados por arranjos institucionais tradicionais.

Uma das formas anormais de divisão do trabalho é a que Durkheim chama de divisão forçada do trabalho. A divisão do trabalho social envolve dois princípios estruturais que variam historicamente e que podem se tornar fonte de instabilidade. De um lado, há uma classificação social que confere recompensas materiais e simbólicas distintas às diferentes ocupações, classificação que, em cada momento histórico, emprega critérios mais ou menos consensuais. De outro lado, há um princípio que organiza a distribuição dos indivíduos nas diversas ocupações. Se no passado critérios vinculados ao nascimento presidiam essa distribuição, para a sociedade moderna o único critério legítimo seria o mérito. Assim, quando um indivíduo não ocupa, no interior da divisão do trabalho social, a posição que melhor corresponderia às suas capacidades naturais e, portanto, às suas aspirações – e o vínculo entre capacidades e aspirações é um dos pressupostos duvidosos em todo esse raciocínio de Durkheim –, então teríamos uma divisão forçada do trabalho, no sentido de que ela é experimentada como ilegítima e só pode ser sustentada pela força. Nas condições modernas, a igualdade de oportunidade é, assim, crucial para que a divisão do trabalho social seja fonte de coesão e não de insatisfação. A instituição da herança, ao instaurar condições iniciais desiguais na busca pelas ocupações mais valorizadas, condições desiguais que não refletem o mérito do indivíduo, seria um arranjo institucional contrário aos valores da sociedade moderna. Há vários pressupostos complicados nesse raciocínio de Durkheim. A ideia de desigualdades naturais, que nada deveriam aos processos de socialização, é um deles, mas não o único nem o mais duvidoso. A crença no caráter consensual da classificação social parece desconsiderar a possibilidade de os valores que presidem essa classificação não serem mais do que a expressão de preconceitos de classe. Cabe perguntar ainda se Durkheim não desconsiderou o conflito potencial entre as tendências igualitárias que atribuiu à sociedade moderna e a proliferação de posições desiguais e distinções de prestígio alavancada pelo avanço da divisão do trabalho.

As objeções não invalidam o ponto essencial apontado por Durkheim. A divisão do trabalho social está associada a uma classificação social que define, para os diversos grupos sociais, o legítimo nível de aspirações. É esse elemento de ordem moral, que aqui se revela na estratificação da sociedade instaurada pela divisão do trabalho, que a sociologia de Durkheim tentou estudar de forma objetiva em suas diversas manifestações.

Alexandre Braga Massella é professor da USP

Perfil biográfico – Émile Durkheim (1858-1917)

Se a consagração do termo “sociologia” deve-se a Auguste Comte, é com Émile Durkheim e a escola que ele formará em torno da revista L’Année Sociologique que a sociologia francesa conhecerá um forte impulso no fim do século 19. Ainda que ele não seja o primeiro sociólogo francês, foi o primeiro a procurar fazer da sociologia uma disciplina autônoma, distinguindo-a de outras ciências, como a psicologia, por exemplo.Em seu dizer, a sociologia não é nem deve ser filosofia da história, que pretenda descobrir as leis gerais do “progresso” da humanidade. Também não é nem deve ser metafísica, julgando-se em condições de determinar a natureza da sociedade. Ela é a ciência dos “fatos sociais”, modos de agir, pensar e sentir exteriores aos indivíduos e dotados de poder de coerção em virtude do qual se impõem.Formado na escola do positivismo, Durkheim define o “fato social” como algo sui generis, uma totalidade não redutível à soma de suas partes. Essa definição lhe permite dissociar o individual do coletivo e o social do psicológico, fundando logicamente as condições de possibilidade de uma ação da sociedade que se impõe sobre os indivíduos.Nascido em Épinal (França), em 1858, Durkheim pertencia a uma linhagem de oito gerações de rabinos. Assumindo-se, porém, como agnóstico, recusa-se a tornar-se rabino e entra na Escola Normal Superior, onde encontra personalidades como Henri Bergson (1859-1941) e Jean Jaurès (1859-1914). Essa formação permite-lhe inscrever-se numa dupla tradição cultural judaica e clássica.

Torna-se professor em Bordeaux, em 1887, encarregado especialmente das aulas de pedagogia e ciências sociais.Jovem professor, Durkheim é enviado à Alemanha, onde é profundamente marcado pelo funcionamento das universidades e pelos filósofos que se interessam pelo papel do Estado moderno. De volta a Bordeaux, Durkheim começa a redação de suas obras de sociologia, disputando, então, com Gabriel Tarde (1843-1904) e René Worms (1858-1917) a hegemonia intelectual sobre a disciplina nascente. A escola durkheimiana termina por se impor, graças aos seus ideais intelectuais e institucionais.

Em 1898, Durkheim funda a revista de ciências sociais L’Année Sociologique e, em 1902, é nomeado professor da Faculdade de Letras da Universidade de Paris, onde desempenha o papel de consolidar a sociologia como disciplina universitária. Em matéria de política, Durkheim permaneceu bastante discreto. Foi membro fundador da Liga Francesa para a Defesa dos Direitos do Homem e sustentou, ocasionalmente, teses socialistas-reformistas.

Desde o início da Primeira Guerra Mundial, Durkheim integra a União Sagrada (movimento de aproximação política que uniu franceses de todas as tendências, políticas ou religiosas, no início da guerra) e torna-se secretário do Comitê de Estudos e de Documentação sobre a guerra, presidido por Ernest Lavisse (1842-1922). O filho de Durkheim, André, morre em combate, em dezembro de 1916. Durkheim cai, então, numa profunda tristeza e isso talvez explique sua morte precoce em 1917.

Marx e a sociologia

texto retirado do site da Revista Cult: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/marx-e-a-sociologia/

 

Para Marx, o proletariado pode desempenhar um papel equivalente ao exercido pela burguesia

Publicado em 12 de janeiro de 2011

Ricardo Musse
Ilustração: André Toma

Na investigação da relação de Marx com a sociologia, não há como subestimar a importância do movimento crítico. Ao longo de toda sua obra, o exame das diversas teorias sociais prevalecentes desemboca, com base no exercício de uma crítica ao mesmo tempo imanente e transcendente, na delimitação de um território próprio denominado pela posteridade de “materialismo histórico”, “sociologia marxista” ou mesmo “sociologia ou teoria crítica”.

Durante o inverno de 1845-1846, refugiados em Bruxelas, Marx e Engels redigiram A Ideologia Alemã. O texto, no entanto, por uma série de motivos, não foi editado e permaneceu assim durante o período em que eles viveram. Numa breve apresentação de sua trajetória intelectual, no Prefácio ao livro Para a Crítica da Economia Política (1859), Marx comenta o manuscrito, destacando que “tratava-se de acertar contas com nossa antiga consciência filosófica. O propósito tomou corpo na forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana (…) Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto quanto já havíamos atingido o fim principal: a autocompreensão”.

Embora o contexto da referência permita inferir que o manuscrito continha um esboço da teoria ali exposta de forma sintética, Marx, fiel ao seu estilo negativo, prescinde dessa afirmação. A interpretação apenas literal dessas frases, predominante entre as duas primeiras gerações de marxistas, corroborou a tese de que se tratava de um momento superado de um itinerário que transitara da filosofia à economia política. Essa hipótese, no entanto, foi plenamente desmentida pela publicação do primeiro volume do livro, em 1926 (o segundo foi editado em 1932). As ideias apresentadas nesse Prefácio, e que se tornaram uma espécie de resumo oficial da teoria marxista da história, retomam quase que literalmente o texto do manuscrito de 1845-1846.

A Ideologia Alemã tornou-se desde então um texto essencial do corpus marxista. Nela delineia-se pela primeira vez de forma nítida o que pode ser considerado o programa do materialismo histórico, gestado por meio de uma crítica incisiva dirigida simultaneamente à filosofia, à teoria política, à historiografia, à economia política, à teoria social etc.

A atividade prática humana
A autocompreensão à qual Marx se refere surgiu, em grande medida, de um acerto de contas com Ludwig Feuerbach, o mais destacado dos filósofos pós-hegelianos. Nos 11 parágrafos das famosas “Teses sobre Feuerbach”, escritas provavelmente em maio ou junho de 1845 – portanto, alguns meses antes do início da redação de A Ideologia Alemã –, Marx, que havia muito já não era idealista, ao contestar o caráter passivo, abstrato e não histórico do materialismo (incluindo o de Feuerbach), destaca que a sensibilidade, a história e a vida social resultam da atividade prática humana.

Um ponto decisivo da divergência de Marx ante Feuerbach consiste na determinação do conceito de “alienação”. No quarto parágrafo, Marx afirma: “a autoalienação religiosa, o desdobramento do mundo em um mundo religioso e um mundo mundano (…) só pode se explicar pela autodilaceração e pela autocontradição desse fundamento mundano”. Desse modo, a questão da alienação, e assim da própria situa- ção do homem, é deslocada de “um reino autônomo nas nuvens” ou da compreensão do indivíduo singular para a vida efetiva, que se desenrola como um nexo de relações sociais.

Por conseguinte, a tarefa mais urgente e impostergável para Marx, naquele momento, era delinear uma nova concepção, materialista, da história e da sociedade. Teoria essa que, não custa repetir, nasceu da convivência com e da crítica à filosofia pós-hegeliana, mas que, de certo modo, pode ser estendida a grande parte da tradição cultural e intelectual burguesa.

A estratégia de Marx e Engels para submeter à crítica os jovens hegelianos, evitando o risco de recair no jogo especular de uma crítica da “filosofia crítica”, passa pela remodelação do conceito de “ideologia” – concebido como um descompasso entre o que os indivíduos, grupos e sociedades imaginam ser e o que efetivamente são.

O esforço crítico vincula-se assim ao desenvolvimento de uma teoria apta a compreender os indivíduos efetivos em suas ações concretas, o que aponta para a necessidade de conhecer suas condições materiais de vida e as relações sociais aí engendradas. Esse programa, ao qual Marx se ateve ao longo de sua trajetória, foi levado adiante submetendo à crítica – imanente e transcendente – aquelas que são comumente apresentadas como as três fontes do pensamento marxista: a teoria social alemã, tal como configurada no idealismo alemão e no movimento dos jovens hegelianos; a teoria social inglesa, consubstanciada na economia política; e as vertentes da sociologia francesa iniciadas por Saint-Simon, com seus desdobramentos no socialismo utópico de Fourier e Proudhon.

Embora, em A Ideologia Alemã, Marx e Engels esbocem alguns traços da aplicação desse programa à história universal, o livro quase não trata do mundo moderno. O levantamento das principais determinações da sociedade capitalista tornou-se imprescindível durante a redação do Manifesto do Partido Comunista (1848).Para compreender o momento histórico, Marx expõe a história da gênese e do desenvolvimento do mercado mundial, assim como dos conflitos sociais e das oposições de classe que moldam esse cenário, delineando os principais pontos da sociologia marxista, numa exposição concisa das coordenadas econômicas, sociais, políticas e culturais do mundo moderno.

O Manifesto pode ser lido então como uma espécie de “dialética da modernidade”, salientando a contradição entre o dinamismo inerente ao desenvolvimento das forças produtivas (destacado na metáfora “tudo que é sólido desmancha no ar”) e a estática inerente às relações de produção, que reproduzem a cada momento as formas desiguais de apropriação da riqueza e de dominação social.

Marx apresenta o Manifesto como uma autoexposição do comunismo. Conjugado a essa tentativa de exposição teórica das premissas de um movimento político que mal entrara em cena e já invocava para si o papel de protagonista, Marx compôs um diagnóstico da modernidade que esquematiza, em linhas gerais, tópicos que só serão desenvolvidos detalhadamente em obras posteriores, particularmente no conjunto de textos projetados pelo próprio Marx como uma “crítica da economia política” e cuja formulação mais acabada consiste em O Capital.

Luta de classes
Dito em termos drásticos, de A Ideologia Alemã, bem como de seus inúmeros estudos sobre história, Marx tomou como pressuposto no Manifesto apenas um esquema mínimo, a tese de que “a história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes”. Trata-se, portanto, de trazer para o centro do relato da história humana o conflito, a “luta ininterrupta, ora dissimulada, ora aberta”, entre oprimidos e opressores.

Apesar do tom panfletário, inerente a seus objetivos práticos, políticos e pedagógicos, o Manifesto mantém a postura crítica em relação à filosofia da história de A Ideologia Alemã. Em lugar de estabelecer uma teleologia para o desenvolvimento geral da espécie humana, Marx, analisando em bloco o destino do mundo moderno, apenas aponta duas tendências, extraídas da observação do passado histórico, procurando evitar recair na ideia de uma necessidade inerente ao espírito ou em alguma forma de determinismo: “uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou uma derrocada comum das classes em luta”.

Na descrição de Marx, a “moderna sociedade burguesa não aboliu os antagonismos de classe”, mas antes colocou novas classes, novas condições de opressão, novas formas e estruturas de luta, sintetizadas no conflito entre burguesia e proletariado.

Marx associa o desenvolvimento histórico-social da burguesia, em especial sua constituição como força política, a uma série de acontecimentos que marcaram a gênese e os desdobramentos do mundo moderno. Desse modo, essa classe é apresentada como o produto de um longo processo, de uma série de revoluções nos meios de produção, transportes e comunicação, por meio do qual ela se desenvolve, economicamente, multiplicando seus capitais e, politicamente, empurrando para segundo plano as demais classes opressoras. Marx adverte assim que, ainda que as demais classes opressoras não sejam suprimidas, doravante quem dá as cartas nos rumos do desenvolvimento histórico e na luta política é a burguesia.

No Manifesto, o mundo burguês é compreendido como uma unidade contraditória entre fatores dinâmicos e invariância estática. O paradoxo de uma sociedade que não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, com eles, o conjunto das relações sociais é próprio do mundo moderno. Enquanto os antigos modos de produção assentavam-se, à maneira de uma tradição, na manutenção e conservação de relações fixas e cristalizadas, a sociedade burguesa se reproduz, mantendo-se idêntica somente ao preço de uma contínua transformação que, acarretando a obsolescência e uma incessante destruição de toda a estrutura de produção existente em determinado momento, subverte inclusive o cenário histórico e político.

Essa dinâmica, característica da modernidade, é apresentada e desdobrada no Manifesto sob a forma de um feixe de expansões que ocorrem simultaneamente, em direções e sobre domínios diferenciados. A descrição do papel “eminentemente revolucionário” desempenhado pela burguesia na história moderna pode ser concebida como uma história dos movimentos do agente histórico dessa expansão, o que explica, entre outras coisas, a forte carga irônica dessas passagens, muitas vezes interpretadas erroneamente como uma apologia da burguesia.

Marx descreve os movimentos segundo os quais o capitalismo extravasa o campo das relações puramente econômicas, espraiando-se para outras esferas da vida social. Esse processo caracteriza-se por uma inaudita mercantilização e reificação de todo o domínio social, atingindo inclusive o âmago da subjetividade.

Mas, ao mesmo tempo em que salienta o predomínio das relações mercantis e da reificação sobre o conjunto da vida social, Marx detecta outro movimento expansionista caracterizado pela colonização, ou melhor, pela penetração capitalista sobre áreas e regiões econômicas ainda não capitalistas – o que abrange desde áreas do mundo rural, situadas próximo do centro do capitalismo, até os territórios pré-capitalistas, situados nos confins do planeta.

Essa expansão, hoje denominada globalização, vincula-se de forma mais estreita, no Manifesto, com a fase do mercado mundial. Por “mercado mundial”, Marx designa tanto uma forma de concentração industrial como o domínio exclusivo do poder pela burguesia (na época do Manifesto, o recém-implantado Estado constitucional representativo).

Essas duas “expansões” são assinaladas, ao mesmo tempo, como expedientes a que a burguesia recorre para tentar superar as crises do capitalismo. Marx indaga: “Por quais meios a burguesia supera as crises? Por um lado, pelo extermínio forçado de grande parte das forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e da exploração mais metódica dos antigos mercados”.

A frase “exploração metódica dos antigos mercados”, outra vertente da expansão capitalista, alude à reformulação dos meios e das formas de produção, o que abrange desde a tecnologia empregada na produção até as formas de manejo da mão de obra no interior do processo produtivo. Esse processo, no entanto, não pode ser levado adiante sem a derrubada de obstáculos (jurídicos, culturais etc.) e sem uma intensificação da padronização específica da economia capitalista sobre as demais esferas do mundo social.

O proletariado
A exposição do proletariado, no decorrer do Manifesto, embora possa ser remetida ao quadro histórico-econômico próprio do mundo moderno, não privilegia as mediações econômicas, mas antes a história de sua formação política. De modo geral, Marx salienta que, na mesma medida em que a burguesia, ou melhor, o capital se desdobra, também o proletariado se desenvolve.

No Manifesto, Marx determina, de modo genérico, o proletariado como aqueles que “só subsistem enquanto encontram trabalho e só encontram trabalho enquanto seu trabalho aumenta o capital”. Esse modo de compreender a inserção social do proletariado destaca a submissão do mundo do trabalho à lógica econômica do mercado: os “operários, que têm de vender-se um a um, são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio e, por isso, igualmente expostos às vicissitudes da concorrência e às oscilações do mercado”.

A dinâmica da expansão, própria do capitalismo, afeta o proletariado no âmago da sua inserção (e integração) social, como força de trabalho, consolidando-se como um dos principais obstáculos à sua organização e formação política. Esse processo foi destacado por Marx como uma forma de reificação típica da situação do trabalho no capitalismo. Primeiro, o trabalhador perde sua autonomia, pela via da expansão da maquinaria e pela ampliação da divisão de trabalho no interior do processo de produção, tornando-se quase um mero acessório da máquina. Mas, sobretudo, ele encontra-se submetido, no interior da fábrica, ao “despotismo” do capital: “Eles não apenas são servos da classe burguesa, do Estado burguês; diariamente e a cada hora eles são escravizados pela máquina, pelo supervisor e, sobretudo, por cada um dos fabricantes burgueses”.

A formação política do proletariado afigura-se, portanto, como uma forma de superação, seja da alienação própria ao mundo do trabalho, seja dos resultados da incessante concorrência entre os trabalhadores gerada pela recorrente reprodução da mão de obra. Nesse sentido, um dos pressupostos práticos do Manifesto, a tarefa de contribuir para a organização do proletariado em um partido político, não pode ser visto como um objetivo descolado da necessidade de superar esses obstáculos.

Pode-se considerar que a aposta de Marx, recorrente ao longo do Manifesto, atribui ao proletariado a possibilidade de desempenhar na história papel equivalente ao exercido pela burguesia. Vale dizer que, para Marx, a classe operária tem a possibilidade de posicionar-se como agente determinante do destino histórico do mundo moderno.

Esse engajamento da classe operária em um projeto de transformação social não é apresentado como um resultado automático e necessário decorrente das condições econômicas e sociais da sociedade burguesa. Marx adverte que os incessantes esforços para organizar o proletariado em um movimento político são, a cada instante, contrariados pela concorrência entre os próprios operários, bem como pela reificação, condições inerentes a sua situação no capitalismo.

A generalização da forma-mercadoria dificulta não só a afirmação do proletariado como sujeito histórico, mas a própria reflexão acerca dos problemas inscritos no cerne da sociedade capitalista, uma vez que a reificação, originariamente atuante no mundo do trabalho, estende-se para todos os setores da sociedade.

Ricardo Musse é professor do
Departamento de Sociologia da USP

Perfil biográfico – Karl Marx (1818-1883)

Karl Marx, num primeiro momento de sua trajetória, adere com entusiasmo àquela que ficou conhecida como a “esquerda hegeliana”, movimento de releitura do pensamento de Hegel (1770-1831), unido por um espírito crítico de recusa de qualquer tipo de transcendência, e centrado num interesse pelos indivíduos humanos, considerados os verdadeiros protagonistas do processo histórico. Superou, porém, essa posição, transformando a herança hegeliana no materialismo histórico, ou seja, numa visão de mundo baseada na concepção de que os eventos históricos são influenciados pelas relações sociais, em particular as relações entre classes, mais do que pelas ideologias.Marx nasceu em Tréveris, em 1818, no seio de uma família burguesa de origem judaica.Estudou em Bonn e em Berlim, doutorando-se com uma tese sobre a filosofia de Demócrito e Epicuro. Em 1843, casou-se com Jenny von Westphalen, jovem nobre que, repudiada por sua família, soube compartilhar a vida de lutas e privações do filósofo revolucionário.Depois de haver colaborado com a Gazeta Renana (um periódico de Colônia, com tendência moderadamente liberal), transferiu-se para Paris, em 1843, para participar, com Arnold Rouge (1802-1880), da fundação dos Anais Franco-Alemães, que representavam o interesse dos jovens hegelianos de expressar um juízo crítico sobre a cultura e a sociedade da época. Apenas o primeiro número da revista foi publicado. Em todo caso, os anos de sua estadia em Paris permitiram a Marx desenvolver intensos estudos, sobretudo de história e economia.Em 1844, conheceu Friedrich Engels (1820-1895), com quem estabeleceu imediatamente uma amizade sincera e profunda, que duraria toda sua vida e seria extraordinariamente construtiva, do ponto de vista tanto filosófico como político.Em janeiro de 1848, redigiu, junto com Engels, o famoso Manifesto Comunista para a Liga dos Comunistas. Quando estourou na França e na Alemanha o movimento revolucionário, Marx passou breve tempo em Paris, voltando logo a Colônia, onde colaborou com a Nova Gazeta Renana. Obrigado a emigrar, instalou-se com sua família em Londres, onde se dedicou a investigações de grande rigor científico, recolhendo elementos de história, economia e sociologia que lhe serviriam de base para escrever O Capital. Foram anos de dificuldades econômicas para Marx, aliviados pela ajuda financeira de Engels, que havia instalado uma indústria em Manchester.Em 1864, Marx fundou a Internacional dos Trabalhadores (conhecida, mais tarde, como a Primeira Internacional). Graças a esse êxito e ao grande prestígio adquirido no campo científico, a autoridade de Marx, como pensador e como organizador, consolidou-se cada vez mais, até sua morte, em 1883. A publicação dos volumes segundo e terceiro de O Capital, assim como de vários outros escritos de Marx, só foi possível graças à dedicação de Engels, que, depois da morte do amigo, recolheu cuidadosamente seus escritos, os reordenou e os preparou para a publicação.

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