segunda-feira, 14 de março de 2011

Durkheim e a vida social como essencialmente moral

texto retirado do site da Revista Cult: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/durkheim-e-a-vida-social-como-essencialmente-moral/

 

O sociólogo tinha a consciência de que a validade de seu projeto precisava ser afirmada em diversas frentes

Publicado em 12 de janeiro de 2011

Alexandre Braga Massella
Ilustração: André Toma

Caso os autores aos quais atribuímos hoje o epíteto de pai ou fundador da sociologia soubessem da posição que a posteridade lhes reconheceu na gênese de uma disciplina, Durkheim talvez fosse o único que tomasse isso como o sinal de que seu projeto intelectual foi, de alguma forma, bem-sucedido.

Defensor intransigente da possibilidade de uma sociologia científica e autônoma, que tomasse de outras ciências apenas sugestões úteis, Durkheim tinha a consciência de que a validade de seu ambicioso projeto precisava ser afirmada em diversas frentes. A frente de batalha mais geral alinhava argumentos de ordem filosófica e metodológica em um discurso que abordava, do ponto de vista da fundamentação da sociologia, o problema clássico do conhecimento: a definição do objeto a ser estudado e da relação que o sujeito do conhecimento deveria manter com esse objeto. As Regras do Método Sociológico, publicado em 1894, é o coroamento desse esforço. A definição do fato social como maneiras de agir, pensar e sentir que se impõem ao indivíduo delimita o domínio da sociologia. Durkheim exige do sociólogo uma atitude de desconfiança em relação ao saber anterior de que todos dispomos sobre a realidade social, pelo mero fato de participarmos dela.

Permeia todo o livro uma ideia cara a Durkheim: há fatos que são o que são porque a sociedade tem as características que tem. Durkheim explorou de forma sistemática os atributos do meio social em suas explicações: o poder de atração que o grupo exerce sobre seus membros, o poder de regular a conduta do indivíduo, a frequência de interações são exemplos de fatores que caracterizam o meio social e que Durkheim empregou em seu clássico estudo sobre o suicídio.

Mas o discurso metodológico não era suficiente aos olhos de Durkheim. No seu entender, a reflexão metodológica não é anterior à ciência, sendo apenas uma explicitação e articulação de procedimentos já empregados pela prática científica. Ou bem a ciência existe, ainda que pouco consciente de seus princípios e de seus fundamentos, ou não existe e não será a reflexão metodológica que decretará sua existência. Daí Durkheim afirmar, em seus ensaios metodológicos, que a sociologia é um ponto de vista que vem se afirmando nas diversas ciências sociais, que desponta nos bons trabalhos de história do direito, da religião ou da economia. Não basta, portanto, a sustentação filosófica ou metodológica da sociologia; é preciso praticá-la, é preciso mostrar, por meio de resultados substantivos, por meio da explicação de problemas bem delimitados, que o método preconizado é fértil. A Divisão do Trabalho Social (1893), tese anterior a Regras do Método Sociológico, O Suicídio (1897) e As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912) são as três grandes obras em que Durkheim desenvolveu, na prática da pesquisa, seu método.

Intervenção na vida social
O empenho de Durkheim em defesa da sociologia foi além dos aspectos teóricos e metodológicos. A relevância prática da disciplina e sua inserção institucional, isto é, seu ensino na universidade francesa, também mereceram sua atenção. “Nossas pesquisas não seriam dignas de uma hora de trabalho, se elas só tivessem um interesse especulativo”: a frase, escrita no Prefácio à primeira edição de A Divisão do Trabalho Social, sugere bem a importância que Durkheim dava ao problema da intervenção na vida social, embora não baste para entender a dimensão dessa intervenção ou sua articulação com a reflexão científica. A contribuição prática não se resumiria à identificação dos meios mais eficientes para a realização de fins estabelecidos por razões extracientíficas. A sociologia teria algo a dizer sobre os fins que orientam nossa conduta, embora não caiba a ela elaborar ou decretar novos ideais. Sua tarefa seria mais modesta: explicitar os ideais para os quais uma sociedade tende confusamente e explicá-los, mostrando como estão enraizados em certas condições de existência e como desempenham certas funções. A reconstrução das tendências evolutivas da sociedade permitiria entender a natureza das crises sociais. A sociologia, devidamente praticada, identificará quais valores e ideais estão em harmonia com as tendências gerais da evolução social e quais são estranhos ou contrariam tal evolução.

Exemplo dessa preocupação é a pergunta que orienta seu estudo sobre a divisão do trabalho social. Trata-se de saber se o ideal moderno da especialização, isto é, o ideal segundo o qual devemos nos especializar e nos tornar indivíduos capazes de desempenhar de forma satisfatória uma função determinada – indivíduos que se realizam cumprindo um papel especializado e limitado, sacrificando, portanto, algumas de nossas faculdades – seria um ideal em consonância com o avanço cada vez maior da divisão do trabalho social.

A contribuição prática que Durkheim esperava da sociologia está vinculada também à sua interpretação da realidade social e política da França. Nascido em 1848, em Épinal, na região da Lorena, Durkheim acompanhou, ao longo de seu desenvolvimento intelectual, o advento e as crises vividas pela Terceira República Francesa. A chamada Terceira República, proclamada em 1870 ainda em meio à Guerra Franco-Prussiana, fez da instauração de uma ordem social liberal uma de suas metas, o que significou a introdução de inovações institucionais consideráveis. Ampliar direitos civis e políticos, arquitetar um regime representativo eficaz, implantar um sistema de educação laico: tarefas árduas, menos pela novidade das reformas, algumas das quais apenas aceleravam mudanças em curso desde os anos 1860, do que pelas resistências conservadoras suscitadas. Para Durkheim, o que estava em jogo nesta nova ordem liberal era a conclusão da obra iniciada com a Revolução Francesa.

Quase um século depois, a nova ordem social iniciada com a revolução estava não só inconclusa como corria o risco de ser desfeita. Os conservadores ainda dispunham de posições-chave no exército, na burocracia estatal, na universidade e na Igreja. Eram adversários do regime republicano e dos valores mais caros à ordem liberal – a razão científica, o individualismo, a indústria – e não abriam mão, é claro, dos alicerces da ordem social conservadora: o domínio cultural da Igreja, um Estado autoritário e uma hierarquia social rígida e refratária aos influxos das ideias igualitárias.

A crítica revolucionária, o abalo causado pela Comuna de Paris em 1871 e a consolidação do socialismo como uma força política e social expressavam o descontentamento radical com a ideia de uma França liberal. Em face das pressões conservadoras e radicais, a França parecia mais uma vez destinada a oscilar entre as tentativas de transformação radical e as recaídas autoritárias e reacionárias. Na visão de Durkheim, as conquistas da sociologia poderiam ajudar na sustentação de uma nova doutrina liberal capaz de constituir uma base ideológica consensual para a Terceira República.

Mas Durkheim também é cauteloso quanto às contribuições da sociologia. A sociologia ainda está em sua infância e, portanto, precisa reconhecer o caráter limitado e provisório do conhecimento que obtém. Ela ainda precisa levantar muitos dados, aperfeiçoar suas técnicas, aprimorar seus recursos conceituais e teóricos. Precisa, sobretudo, superar o estágio das sínteses filosóficas que tentavam captar, prematuramente, a essência da vida social. Cabe à sociologia entregar-se ao estudo de problemas delimitados, divididos entre diversos especialistas. A compreensão da sociedade exige um trabalho de equipe.

A fundação da revista Année Sociologique, em 1898, da qual Durkheim participou ativamente, mostra bem como ele levava a sério a ideia da ciência como um empreendimento coletivo. A revista reuniu um conjunto de intelectuais simpáticos às ideias de Durkheim, ainda que não cegamente obedientes a elas. A consolidação de sua sociologia como escola de pensamento foi um dos resultados da revista. Dividida em várias seções que mapeavam o território da disciplina – sociologia jurídica, moral, religiosa, econômica –, a revista resenhava a literatura sociológica e publicava artigos originais (vários artigos de Durkheim foram publicados aí pela primeira vez).

A propagação da sociologia de Durkheim deu-se também pelos canais institucionais da universidade francesa. Não que esses canais estivessem prontos. A sociologia não era, na época, uma disciplina institucionalizada, isto é, não dispunha de um curso universitário em que fosse ensinada e nem sequer figurava no currículo de outros cursos. O próprio Durkheim tinha formação de filósofo e começou ensinando filosofia em liceus, atividade que exerceu de 1882 a 1887. Em 1887 foi criado, na Universidade de Bordeaux, um posto em “ciência social e pedagogia” especialmente para Durkheim, que lecionou aí cursos sobre a educação, a família, a religião e o socialismo, alguns dos quais publicados postumamente. Em 1902, ingressou na Sorbonne, novo passo na institucionalização da disciplina.

A interpretação da sociedade moderna
A concepção de sociedade elaborada por Durkheim faz da vida social um fenômeno essencialmente moral. Para Durkheim, sempre que há sociedade há altruísmo e, portanto, vida moral. Nossa conduta propriamente social não se orienta apenas para a satisfação de nossos interesses e não faz dos outros um meio para a obtenção de nossos fins. Isso não quer dizer que inexistam conflitos na sociedade, mas que a fonte deles é o mundo inerentemente desregulado dos interesses econômicos, mundo que a sociedade, em condições normais, tende a regular. A vida social exige de nós sacrifícios, renúncias, mas o grupo possui um prestígio e uma autoridade tal que desempenhamos nossos deveres motivados pelo sentimento de obrigação, pelo senso do dever e não pelo temor às sanções.

A aplicação dessa visão de sociedade ao mundo moderno exige que Durkheim conteste a visão de sociedade presente na economia clássica. Durkheim precisa mostrar que não é suficiente, para dar conta da coesão que a sociedade moderna apresenta, considerá-la como resultado de uma miríade de ações egoístas, em que os indivíduos agem orientados apenas pela maximização de seus interesses. É contra essa visão, predominante na economia e no liberalismo clássicos, que Durkheim se volta em A Divisão do Trabalho Social. Sua ideia é que a divisão do trabalho não é apenas um fenômeno econômico, como queriam os economistas, mas um fenômeno social e, portanto, gerador de vínculos de solidariedade. A divisão do trabalho não gera apenas interdependência objetiva, no sentido de que em uma sociedade em que o trabalho social está dividido dependemos uns dos outros para a satisfação de nossos interesses. Durkheim quer ir além dessa ideia, já devidamente explorada pelos economistas clássicos. A divisão do trabalho teria um efeito muito maior, alcançando as camadas mais profundas da consciên- cia moral: além de fazer com que os homens se ajudem mutuamente, quer queiram quer não, faz com que se respeitem, gerando um sistema de obrigações morais. Participando da divisão do trabalho social, cada membro da sociedade sente a importância dos demais, compreende que ninguém basta a si mesmo e que são todos parte de um todo maior. É esse efeito moralizador que Durkheim ressalta em sua reação à interpretação econômica da divisão do trabalho, que enfatizava muito mais os aspectos materiais, como o aumento de produtividade.

A divisão do trabalho é um processo que atravessa a história da sociedade humana, que não começa em um momento preciso, mas vem se afirmando ao longo do tempo e atinge na sociedade moderna um ponto culminante. Como fonte de moralidade e, portanto, de ordem social, cabe esperar que a sociedade moderna, que testemunha o auge desse processo, se beneficie de suas virtudes morais. Durkheim sabe, porém, que a sociedade moderna é permeada por conflitos e que o conflito entre capital e trabalho é um dos mais ameaçadores à ordem social.

Durkheim tratou de alguns problemas sociais característicos da sociedade moderna, mas não os associou à divisão do trabalho como tal e sim ao que chamou de formas anormais da divisão do trabalho. A raiz dos problemas não estaria no princípio estrutural que dá sustentação à sociedade moderna – a divisão do trabalho social –, mas no fato de que esse princípio estrutural ainda não pode gerar todos os seus efeitos benéficos, seja porque não teve tempo suficiente para isso, seja em razão dos obstáculos apresentados por arranjos institucionais tradicionais.

Uma das formas anormais de divisão do trabalho é a que Durkheim chama de divisão forçada do trabalho. A divisão do trabalho social envolve dois princípios estruturais que variam historicamente e que podem se tornar fonte de instabilidade. De um lado, há uma classificação social que confere recompensas materiais e simbólicas distintas às diferentes ocupações, classificação que, em cada momento histórico, emprega critérios mais ou menos consensuais. De outro lado, há um princípio que organiza a distribuição dos indivíduos nas diversas ocupações. Se no passado critérios vinculados ao nascimento presidiam essa distribuição, para a sociedade moderna o único critério legítimo seria o mérito. Assim, quando um indivíduo não ocupa, no interior da divisão do trabalho social, a posição que melhor corresponderia às suas capacidades naturais e, portanto, às suas aspirações – e o vínculo entre capacidades e aspirações é um dos pressupostos duvidosos em todo esse raciocínio de Durkheim –, então teríamos uma divisão forçada do trabalho, no sentido de que ela é experimentada como ilegítima e só pode ser sustentada pela força. Nas condições modernas, a igualdade de oportunidade é, assim, crucial para que a divisão do trabalho social seja fonte de coesão e não de insatisfação. A instituição da herança, ao instaurar condições iniciais desiguais na busca pelas ocupações mais valorizadas, condições desiguais que não refletem o mérito do indivíduo, seria um arranjo institucional contrário aos valores da sociedade moderna. Há vários pressupostos complicados nesse raciocínio de Durkheim. A ideia de desigualdades naturais, que nada deveriam aos processos de socialização, é um deles, mas não o único nem o mais duvidoso. A crença no caráter consensual da classificação social parece desconsiderar a possibilidade de os valores que presidem essa classificação não serem mais do que a expressão de preconceitos de classe. Cabe perguntar ainda se Durkheim não desconsiderou o conflito potencial entre as tendências igualitárias que atribuiu à sociedade moderna e a proliferação de posições desiguais e distinções de prestígio alavancada pelo avanço da divisão do trabalho.

As objeções não invalidam o ponto essencial apontado por Durkheim. A divisão do trabalho social está associada a uma classificação social que define, para os diversos grupos sociais, o legítimo nível de aspirações. É esse elemento de ordem moral, que aqui se revela na estratificação da sociedade instaurada pela divisão do trabalho, que a sociologia de Durkheim tentou estudar de forma objetiva em suas diversas manifestações.

Alexandre Braga Massella é professor da USP

Perfil biográfico – Émile Durkheim (1858-1917)

Se a consagração do termo “sociologia” deve-se a Auguste Comte, é com Émile Durkheim e a escola que ele formará em torno da revista L’Année Sociologique que a sociologia francesa conhecerá um forte impulso no fim do século 19. Ainda que ele não seja o primeiro sociólogo francês, foi o primeiro a procurar fazer da sociologia uma disciplina autônoma, distinguindo-a de outras ciências, como a psicologia, por exemplo.Em seu dizer, a sociologia não é nem deve ser filosofia da história, que pretenda descobrir as leis gerais do “progresso” da humanidade. Também não é nem deve ser metafísica, julgando-se em condições de determinar a natureza da sociedade. Ela é a ciência dos “fatos sociais”, modos de agir, pensar e sentir exteriores aos indivíduos e dotados de poder de coerção em virtude do qual se impõem.Formado na escola do positivismo, Durkheim define o “fato social” como algo sui generis, uma totalidade não redutível à soma de suas partes. Essa definição lhe permite dissociar o individual do coletivo e o social do psicológico, fundando logicamente as condições de possibilidade de uma ação da sociedade que se impõe sobre os indivíduos.Nascido em Épinal (França), em 1858, Durkheim pertencia a uma linhagem de oito gerações de rabinos. Assumindo-se, porém, como agnóstico, recusa-se a tornar-se rabino e entra na Escola Normal Superior, onde encontra personalidades como Henri Bergson (1859-1941) e Jean Jaurès (1859-1914). Essa formação permite-lhe inscrever-se numa dupla tradição cultural judaica e clássica.

Torna-se professor em Bordeaux, em 1887, encarregado especialmente das aulas de pedagogia e ciências sociais.Jovem professor, Durkheim é enviado à Alemanha, onde é profundamente marcado pelo funcionamento das universidades e pelos filósofos que se interessam pelo papel do Estado moderno. De volta a Bordeaux, Durkheim começa a redação de suas obras de sociologia, disputando, então, com Gabriel Tarde (1843-1904) e René Worms (1858-1917) a hegemonia intelectual sobre a disciplina nascente. A escola durkheimiana termina por se impor, graças aos seus ideais intelectuais e institucionais.

Em 1898, Durkheim funda a revista de ciências sociais L’Année Sociologique e, em 1902, é nomeado professor da Faculdade de Letras da Universidade de Paris, onde desempenha o papel de consolidar a sociologia como disciplina universitária. Em matéria de política, Durkheim permaneceu bastante discreto. Foi membro fundador da Liga Francesa para a Defesa dos Direitos do Homem e sustentou, ocasionalmente, teses socialistas-reformistas.

Desde o início da Primeira Guerra Mundial, Durkheim integra a União Sagrada (movimento de aproximação política que uniu franceses de todas as tendências, políticas ou religiosas, no início da guerra) e torna-se secretário do Comitê de Estudos e de Documentação sobre a guerra, presidido por Ernest Lavisse (1842-1922). O filho de Durkheim, André, morre em combate, em dezembro de 1916. Durkheim cai, então, numa profunda tristeza e isso talvez explique sua morte precoce em 1917.

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